sábado, 14 de janeiro de 2012

Eu morei na Cracolândia - Parte I


Hoje estou fazendo pós-graduação em dependência química. Fui dependente de drogas por 17 anos dos quais passei 6 anos na rua, onde dormia, comia, trocava de roupa e fumava crack 24 horas por dia.

Até quando a polícia, o governo e as secretarias vão continuar decidindo o que fazer em relação ao problema das drogas em São Paulo sem ouvir os especialistas no assunto?

Na última quarta-feira, 5 de janeiro, vi uma entrevista de um coordenador a respeito desta ação da polícia de espantar e espalhar os dependentes químicos da Cracolândia. Ele disse que a primeira etapa é uma ação de polícia e a segunda é uma ação social. Sim, só que não sobrará ninguém para fazer ação social, pelo menos não no centro da cidade.

Também vi uma entrevista de um secretário que coordena esta ação e ele disse que primeiro devemos dificultar o uso das drogas para os dependentes, para que estes fiquem mais sensíveis e aceitem o tratamento. Esta é uma fala de quem realmente não entende como funciona a mente de um usuário de crack ou de alguém que não pode dizer ou fazer mais do que isto por outros motivos.

Um “craqueiro“ vive para fumar e fuma para viver, esta é sua filosofia. O que precisar ser feito, ele fará. Com o tempo cada usuário vai aceitando fazer ou participar de coisas cada vez mais graves e comprometedoras, uma vez que sua doença é progressiva e o consumo tem que ser cada vez mais intenso. Costumo dizer que o avanço da doença é como se o dependente assinasse pactos com o diabo e vai outorgando a ele procurações entregando sua vida. Esta doença é demoníaca e dentro de cada usuário se instala um demônio especializado em algum tipo de falcatrua, golpe ou crime para conseguir mais droga.

Como é que um “craqueiro” vai se sensibilizar com qualquer tipo de coisa se ele não experimenta mais nenhum tipo de sentimento, vivendo pela inércia como um zumbi pelas ruas?

Até quando vamos continuar convidando educadamente cada usuário a aceitar tratamento?

O que vai acontecer com esta ação na Cracolândia é que os usuários vão ficar por um tempo rodeando a área até perceberem que a ação terminou ou que ela não vai terminar e vão se instalar em outros lugares.

O morador de rua e usuário de crack procura três coisas para se instalar em uma determinada região para viver e usar o crack:

1. Ele precisa estar próximo de onde vai conseguir comprar a droga;
2. Ele precisa estar em uma região onde circulem pessoas para que ele possa “acharcar” (pedir e enganar pessoas com estórias fabulosas) ou roubar.
3. Ele procura estar em pontos ou situações que evitem que seja pego.

Por isso, a Cracolândia se formou, porque o aglomerado de pessoas dificulta a ação da polícia e também porque muitos usuários de outras cidades que já precisam usar 24 horas por dia (e nas suas cidades ou bairros não conseguem) vão para a Cracolândia pela fama que ela tem de abrigar os “craqueiros“ e de prover recursos, possibilidades e lugares (buracos) para o uso.

Sinceramente, se cada usuário perceber que a Cracolândia não vai mais se reestruturar eles vão se espalhar. São Paulo tem mais de 30 pequenas Cracolândias nas quais eles vão se instalar.

A primeira etapa de uma ação na Cracolândia deveria ser recolher o usuário para uma internação involuntária de 30 dias para que ele possa ao menos voltar a pensar, a se comunicar e a conseguir conversar.

A segunda etapa deveria ser dar a ele uma opção de tratamento em um lugar mais calmo, mais agradável e mais distante de São Paulo.

Conforme vai se estruturando, ele vai conquistando regimes de tratamento cada vez mais abertos e uma maior relação de confiança.

Se ele voltar para a rua e para o uso das drogas, repetimos tudo de novo até o vencermos pelo cansaço.

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