sábado, 14 de janeiro de 2012

Eu morei na Cracolândia – Parte 2

Enquanto existir quem queira usar droga sempre vai existir quem queira vender, e havendo vendedor e comprador o negócio sempre vai continuar.

Alguns detalhes que precisamos prestar atenção a respeito da Cracolândia:

1. A Cracolândia é três vezes maior do que aquilo que vemos nas ruas. Os outros 2/3 estão “enfiados” dentro de cortiços, de hotéis pulguentos e em outros buracos que a polícia ainda não conhece. Isso quer dizer que se tirarmos todos das ruas, nós só eliminamos a parte mais visível do problema (e também a menor).

2. Já viu aquela cena que mostra de cima um monte de usuários de crack e aparece um outro sujeito com a mão cheia de pedra distribuindo a droga quando é cercado pelos demais? Isso não quer dizer que ele é traficante! Aliás, traficante mesmo nem anda por ali. Muitas vezes alguém do grupo é escolhido para buscar a droga para os demais, outras vezes um cara vai, pega cinco pedras e vende três para pagar seu uso. Traficante mesmo é trabalho de inteligência que começa na fronteira. O universo da Cracolândia não é somente composto de usuário e traficante.

3. Tem sido divulgado uma quantidade enorme de abordagens. Se for somente para montar um relatório no fim do dia com o intuito de divulgar números não tem muita utilidade. Estas abordagens deveriam cadastrar cada usuário em um banco de dados único, com foto, classificando cada um de acordo com seu grau de periculosidade, grau de dependência química, atividades, família, origem, histórico para que possamos saber como agir, caso a caso, cada vez que o reencontrássemos nas ruas.

4. Tenho visto na mídia algumas entrevistas de usuários que dizem desejaram parar. Sim, dependendo do momento que ele for abordado, ele vai dizer que quer parar, só que eles querem parar tomando uma pílula mágica que os faça não ter mais vontade da droga. Isso não existe. Eles não querem fazer a caminhada de volta que os levou para o fundo do poço, portanto nenhum usuário consegue sequer responder se quer ou não parar.

5. Assistente social normalmente não é especialista em dependência química e colocá-los para tentar convencer um dependente a aceitar tratamento é exigir destes profissionais um poder de argumento fora do comum. Além disso, normalmente as abordagens ocorrem nas ruas, que não é o lugar mais adequado, e na frente de outros usuários, que também não é a situação mais adequada. Para completar, a abordagem é feita na hora que o assistente decide e não na hora que o usuário está mais suscetível.

6. Esses dias, vi uma reportagem que diz que mais de 700 abordagens foram feitas e que 10% aceitaram tratamento. Ok, são 70 pessoas. Considerando que a OMS confirma que o índice de recuperação de quem se submete a um tratamento é de até 30%, estamos falando de 20 pessoas ou menos. É muito pouco para o tamanho e esforço da ação.

7. O índice de recuperação de no máximo 30% é obtido em instituições privadas renomadas e caras, com equipes multidisciplinar de profissionais experientes. Se o governo não tem hospital para tratar dependente químico e terceiriza a internação, que resultados vamos obter se o governo paga 1/3 do valor mínimo necessário para tratar um dependente químico em instituições conveniadas?

8. Sim, existe uma parte dos usuários que pode ser sensibilizada para o tratamento. Mas esta sensibilização não vai ocorrer espantando-os pela polícia. Poderíamos montar o “Casarão da Vida”, que funcionaria 24 horas por dia, oferecendo cama limpa, banho, comida gostosa, carinho, amor e compreensão. Eles podem até voltar para a rua no dia seguinte, mas vão se lembrar do respeito que receberam. Muitas vezes, nós conquistamos pessoas difíceis por insistirmos em fazer o bem para  elas, e não fazendo aquilo que elas tentam provocar em nós.

9. É verdade que a maioria não vai se sensibilizar com nada, mas uma coisa é certa: usar drogas na frente de crianças e idosos, abordar e intimidar os moradores não é uma opção, e se não é opção, como é que podemos continuar perguntando quem quer se tratar? 

10. Não existe como reprimir o consumo e o tráfico desarticulando o aglomerado de pessoas criando dificuldades para os usuários conseguirem a droga. São Paulo tem mais de 300 pontos de venda de drogas! Só na Avenida Jornalista Roberto Marinho, entre a Marginal do Rio Pinheiros e a Av.Washington Luiz, são aproximadamente 30. Ouvi um jornalista na rádio dizer que o usuário de crack não vai ter como escapar, pois ele precisa da Cracolândia e do aglomerado de pessoas, pois o crack não é uma droga social. Pois ele está enganado. Existe uma infinidade de modalidades diferentes de uso do crack. A paranóia faz com que alguns usuários precisem estar no meio de outros e ao ar livre para não se sentirem tão sufocados, pois eles não conseguem usar sozinhos e em lugares fechados. Mas pelo menos 70% dos usuários sente uma paranóia contrária. Justamente precisam usar sozinhos, pois em grupo ficam ainda mais paranóicos. E precisam usar em lugares fechados porque assim se sentem mais seguros. Por isso, como mencionei acima, 2/3 da Cracolândia nós não vemos.


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