Enquanto existir quem
queira usar droga sempre vai existir quem queira vender, e havendo vendedor e
comprador o negócio sempre vai continuar.
Alguns detalhes que
precisamos prestar atenção a respeito da Cracolândia:
1. A Cracolândia é três vezes maior do que aquilo que
vemos nas ruas. Os outros 2/3 estão “enfiados” dentro de cortiços, de hotéis pulguentos
e em outros buracos que a polícia ainda não conhece. Isso quer dizer que se
tirarmos todos das ruas, nós só eliminamos a parte mais visível do problema (e também
a menor).
2. Já viu aquela cena que
mostra de cima um monte de usuários de crack e aparece um outro sujeito com a
mão cheia de pedra distribuindo a droga quando é cercado pelos demais? Isso não
quer dizer que ele é traficante! Aliás, traficante mesmo nem anda por ali. Muitas
vezes alguém do grupo é escolhido para buscar a droga para os demais, outras
vezes um cara vai, pega cinco pedras e vende três para pagar seu uso. Traficante
mesmo é trabalho de inteligência que começa na fronteira. O universo da Cracolândia
não é somente composto de usuário e traficante.
3. Tem sido divulgado uma
quantidade enorme de abordagens. Se for somente para montar um relatório no fim
do dia com o intuito de divulgar números não tem muita utilidade. Estas
abordagens deveriam cadastrar cada usuário em um banco de dados único, com foto,
classificando cada um de acordo com seu grau de periculosidade, grau de dependência
química, atividades, família, origem, histórico para que possamos saber como
agir, caso a caso, cada vez que o reencontrássemos nas ruas.
4. Tenho visto na mídia
algumas entrevistas de usuários que dizem desejaram parar. Sim, dependendo do
momento que ele for abordado, ele vai dizer que quer parar, só que eles querem
parar tomando uma pílula mágica que os faça não ter mais vontade da droga. Isso
não existe. Eles não querem fazer a caminhada de volta que os levou para o
fundo do poço, portanto nenhum usuário consegue sequer responder se quer ou não
parar.
5. Assistente social
normalmente não é especialista em dependência química e colocá-los para tentar
convencer um dependente a aceitar tratamento é exigir destes profissionais um
poder de argumento fora do comum. Além disso, normalmente as abordagens ocorrem
nas ruas, que não é o lugar mais adequado, e na frente de outros usuários, que também
não é a situação mais adequada. Para completar, a abordagem é feita na hora que
o assistente decide e não na hora que o usuário está mais suscetível.
6. Esses dias, vi uma
reportagem que diz que mais de 700 abordagens foram feitas e que 10% aceitaram
tratamento. Ok, são 70 pessoas. Considerando que a OMS confirma que o índice de
recuperação de quem se submete a um tratamento é de até 30%, estamos falando de
20 pessoas ou menos. É muito pouco para o tamanho e esforço da ação.
7. O índice de
recuperação de no máximo 30% é obtido em instituições privadas renomadas e
caras, com equipes multidisciplinar de profissionais experientes. Se o governo
não tem hospital para tratar dependente químico e terceiriza a internação, que
resultados vamos obter se o governo paga 1/3 do valor mínimo necessário para
tratar um dependente químico em instituições conveniadas?
8. Sim, existe uma parte
dos usuários que pode ser sensibilizada para o tratamento. Mas esta
sensibilização não vai ocorrer espantando-os pela polícia. Poderíamos montar o “Casarão
da Vida”, que funcionaria 24 horas por dia, oferecendo cama limpa, banho,
comida gostosa, carinho, amor e compreensão. Eles podem até voltar para a rua
no dia seguinte, mas vão se lembrar do respeito que receberam. Muitas vezes, nós
conquistamos pessoas difíceis por insistirmos em fazer o bem para elas, e
não fazendo aquilo que elas tentam provocar em nós.
9. É verdade que a
maioria não vai se sensibilizar com nada, mas uma coisa é certa: usar drogas na
frente de crianças e idosos, abordar e intimidar os moradores não é uma opção,
e se não é opção, como é que podemos continuar perguntando quem quer se tratar?
10. Não existe como
reprimir o consumo e o tráfico desarticulando o aglomerado de pessoas criando
dificuldades para os usuários conseguirem a droga. São Paulo tem mais de 300
pontos de venda de drogas! Só na Avenida Jornalista Roberto Marinho, entre a Marginal
do Rio Pinheiros e a Av.Washington Luiz, são aproximadamente 30. Ouvi um
jornalista na rádio dizer que o usuário de crack não vai ter como escapar, pois
ele precisa da Cracolândia e do aglomerado de pessoas, pois o crack não é uma
droga social. Pois ele está enganado. Existe uma infinidade de modalidades
diferentes de uso do crack. A paranóia faz com que alguns usuários precisem
estar no meio de outros e ao ar livre para não se sentirem tão sufocados, pois
eles não conseguem usar sozinhos e em lugares fechados. Mas
pelo menos 70% dos usuários sente uma paranóia contrária. Justamente precisam
usar sozinhos, pois em grupo ficam ainda mais paranóicos. E precisam usar em
lugares fechados porque assim se sentem mais seguros. Por isso, como mencionei
acima, 2/3 da Cracolândia nós não vemos.